Juventude protegida, mas despreparada
- marinahelou
- 24 de jun.
- 4 min de leitura
Devemos construir uma cultura que crie crianças mais livres e fortes – não apesar dos desafios do nosso tempo, mas por causa deles
Por Marina Helou e Jonathan Haidt, publicado originalmente no Estadão em 24/06/25.
Crianças não brincam mais na rua. Chegam à adolescência sem saber andar sozinhas pelo bairro. Vivem hiperconectadas e, ainda assim, solitárias. Dizem-se exaustas, desenvolvem ansiedade, depressão, automutilação. Vivem fortemente supervisionadas no mundo físico, mas vagam livremente pelo caos descontrolado do mundo digital. Muitas relatam sentir-se cada vez mais distantes da vida real.
A proibição dos celulares nas escolas brasileiras marca um passo significativo na proteção da atenção e do bem-estar dos alunos. Mas, mesmo limitando a influência dos dispositivos digitais nas salas de aula, uma questão mais profunda permanece: estamos preparando nossas crianças para enfrentar o mundo real com autonomia, confiança e resiliência?
O problema vai além da sala de aula, e, segundo a Unicef, crianças entre 8 e 12 anos passam, em média, quase cinco horas por dia em frente a telas fora da escola. O desafio, portanto, não é apenas pedagógico – é social, cultural e familiar.
Em A Geração Ansiosa, lançado no Brasil no final de 2024, uma das recomendações mais urgentes é a de dar às crianças independência no mundo físico. Isso significa permitir que elas assumam riscos, tomem decisões e interajam sem supervisão – habilidades que precisarão desesperadamente para a vida adulta. Infelizmente, muitas hoje vivem num estado de supervisão quase constante. Seus dias são planejados, seus movimentos são restritos e suas oportunidades de explorar o mundo em seus próprios termos são cada vez mais raras.
A superproteção costuma ser movida pelo medo – um medo com motivos reais, mas que nem sempre se sustenta em dados: a percepção de insegurança é, muitas vezes, maior do que a violência de fato. O problema é que, ao protegê-las demais no mundo real e negligenciá-las no ambiente virtual, estamos pagando um preço alto em relação a autoconfiança e saúde mental de crianças e adolescentes. Em vez disso, devemos investir em ambientes seguros que permitam a exploração, cooperação entre escolas e comunidades e políticas públicas que reivindiquem ruas e parques como espaços saudáveis e seguros.
No Reino Unido, alguns bairros começaram a revezar a supervisão parental durante o horário extracurricular, uma forma de permitir que as crianças brinquem livremente em espaços públicos. No Brasil, algumas escolas se abrem às famílias e à comunidade aos fins de semana, um passo pequeno, mas importante na criação de um ecossistema compartilhado de confiança e responsabilidade. Projetos como o Escola Aberta, que já funciona em São Paulo e no Recife, estão ampliando o uso dos espaços escolares, criando centros de convivência e lazer que reforçam seu papel como espaço comunitário.
É hora de reformular a conversa. O problema não é apenas que as crianças passam muito tempo online. É também que elas não passam tempo suficiente offline em experiências significativas e independentes. A verdadeira liberdade ensina resolução de problemas, coragem e autorregulação, características que não podem ser aprendidas num quarto trancado e na frente de uma tela brilhante.
É preciso atentar para as regras que acabam reforçando o controle excessivo. Uma série de cidades brasileiras proíbe crianças de usarem elevadores desacompanhadas antes dos 10 ou 12 anos. Em São Paulo, há uma proibição expressa para que crianças subam em árvores nos parques municipais. Em vez de proibir, precisamos de condições estruturadas e seguras para o desenvolvimento das crianças e que encorajem sua autonomia progressiva.
O debate brasileiro ganhou uma dimensão prática nas últimas semanas, com a discussão do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre a necessidade de regulação mais clara das plataformas. Ao mesmo tempo, cresce a preocupação pública com os efeitos da dopamina digital – likes, notificações e vídeos em rolagem infinita – sobre nosso cérebro. A tecnologia não pode ser demonizada, mas é urgente encontrar formas de garantir que seu uso ocorra dentro de parâmetros saudáveis, especialmente para crianças e adolescentes.
A geração que cresce hoje não está apenas cercada por tecnologia – é moldada por ela. Ao mesmo tempo que o mundo digital se impõe como inevitável, devemos garantir que o mundo real continue acessível, estimulante e habitável para nossas crianças. Isso exige uma mudança cultural profunda, que valorize o brincar, o tempo livre, a convivência com outras idades e a confiança na autonomia progressiva das crianças.
É possível imaginar um futuro em que o digital conviva com o físico de forma mais equilibrada. Mas isso depende de decisões conscientes no presente, da parte das famílias, de educadores, governos e empresas de tecnologia.
À medida que navegamos por esta encruzilhada geracional, precisamos fazer mais do que restringir hábitos digitais que sejam prejudiciais. Devemos construir ativamente uma cultura que crie crianças mais livres e fortes – não apesar dos desafios do nosso tempo, mas precisamente por causa deles.
Jonathan Haidt é doutor em Psicologia, professor na NYU e autor de uma série de livros, entre os quais ‘A Geração Ansiosa’ (2024)
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